17 de janeiro de 2010

Antes dos orixás


Por Luis Nicolau Parés

Na Bahia do século XIX, o termo mais habitual para designar as divindades africanas era “vudum” ou “santo vudum” e não orixá, o termo equivalente iorubá.

Os cultos aos voduns, originários da área gbe na África Ocidental (que corresponde à região dominada pelo antigo reino do Daomé, atual República do Benin), tiveram um papel determinante na formação do Candomblé baiano e do Tambor de Mina maranhense.

Na Bahia e no Maranhão os escravos provenientes da área gbe foram conhecidos como jejes, enquanto os seus vizinhos de fala iorubá, originários de terras localizadas na atual Nigéria, foram conhecidos como nagôs. Já na própria África, devido a uma longa historia de contato cultural, havia grandes semelhanças entre os cultos aos orixás e os cultos aos voduns. No Brasil, Nina Rodrigues, notando a “íntima fusão” dessas tradições, qualificou as suas práticas religiosas como “jeje-nagô”. Embora o termo “fusão” pareça excessivo, convém notar que muitos dos termos hoje usados nos candomblés nagôs, angolas e outros, são de origem gbe, ou seja, próprios dos candomblés jejes.

Por exemplo, os nomes dos noviços no grupo iniciático, “dofono” ou “fomo”; do altar ou santuário, “peji”; do quarto dos iniciados, “huncó” ou “runco”; da maceração de folhas com água, “amasi”; dos tambores, “rum”, “rumpi” e “runle”; da vareta percusiva, “aguidavi”; do agogô sagrado, “gã”; e do cargo masculino “ogã”, seriam todas palavras jejes. Esses termos referem-se a aspectos da “estrutura profunda” do ritual, como processos de iniciação, hierarquia do grupo, espaço sagrado e instrumentos, e revelam a importância que a tradição do culto aos voduns desempenhou no processo formativo das religiões afro-brasileiras.

Além dessa significativa influência lingüística, foram os cultos aos voduns que provavelmente forneceram no Brasil setecentista as primeiros referências para a organização do grupo religioso numa estrutura eclesial ou conventual. O tipo de devoção desenvolvida a partir da consagração de devotos às divindades através de processos de iniciação e da instalação de altares fixos em espaços sagrados estáveis contrastava com as práticas terapêuticas e oraculares de caráter mais individualizado, próprias da maioria dos calundus coloniais. Aliás, o culto de várias divindades num mesmo templo era prática comum nas tradições vodum africanas, desde pelo menos o século XVIII. Assim, a reunião e celebração conjunta de divindades de origens distintas nos terreiros afro-brasileiros, que alguns consideram uma “invenção” americana resultante do encontro multi-étnico gerado pela escravidão, encontraria também nos cultos aos voduns um modelo de organização que teria sido reproduzido por variados grupos africanos com suas divindades particulares.

Apesar dessa notória influência histórica, na virada do século XIX as tradições jejes perderam visibilidade frente àquelas dos cultos aos orixás dos nagôs. O processo de “nagonização” do Candomblé iniciou-se, sobretudo, no período pós-abolição, coincidindo com a gradativo desaparecimento dos africanos entre a população negra no Brasil.

No entanto, embora em número reduzido, uma série de congregações religiosas tem perpetuado o culto de certos voduns originários da área gbe. No Maranhão é famosa a Casa das Minas, e na Bahia são conhecidos, entre outros, os terreiros Bogum – de Salvador – e o Seja Hundé – de Cachoeira –, ambos fundados no século XIX. Essas casas ainda em atividade são emblemas contemporâneos de uma presença muito mais significativa no passado. Foi precisamente a partir da especificidade do culto aos voduns praticado nesses terreiros, em contraste com o culto às divindades iorubás e angolas (orixás e inquices, respectivamente), que no contexto religioso foi construído o conceito de “nação jeje” para designar um culto ou rito diferenciado.

A Casa das Minas, em São Luís do Maranhão, também conhecida como Querebentã Zomadonu, foi fundada por volta de 1840 sob a liderança de Maria Jesuína, africana consagrada ao vodum Zomadonu, dono espiritual da Casa. Pesquisas realizadas por Pierre Verger sugerem que a fundadora desse templo teria sido a rainha Nã Agontimé, viúva do rei Angonglo (1789-1797) do Daomé, vendida como escrava pelo rei Adandozan (1797-1818), que governou após o falecimento do pai e que foi destronado pelo meio irmão Guezo (1818-1858), filho de Nã Agontimé. Guezo organizou uma embaixada às Américas para procurar a sua mãe. Independentemente de ser Maria Jesuína a mesma Na Agontimé, o que parece claro é que na constituição do terreiro maranhense participaram especialistas religiosos associados à família real daomeana, e isso porque lá se preservam, como em nenhum outro templo no Brasil e provavelmente nas Américas, fortes traços do culto aos antigos reis e príncipes do Daomé, ancestrais divinizados que no Benim são conhecidos como Nesuhue.

O vodun Zomadonu, por exemplo, é tido no Benim como filho do rei Acabá e como chefe dos tohosus ou “reis das águas”, categoria dos Nesuhue que inclui os espíritos dos filhos reais nascidos com alguma anormalidade ou deformidade física. O panteão da Casa maranhense se organiza em três grupos principais: a família de Dambirá, a família de Quevioçô e a família real ou de Davice que, além de Zomadonu, inclui os voduns dos reis Daco-Donu, Acabá (Koisi-Acabá) e Agajá (Doçu-Agajá). O rei Agonglo (Agongono), o último membro da dinastia daomeana conhecido no Brasil, pertence à família de Savaluno, um dos grupos hóspedes das três famílias principais.

O paralelismo entre o culto da Casa das Minas e o culto aos ancestrais Nesuhue se evidencia também em vários aspectos da atividade ritual, como a estrutura da iniciação das vodúnsis (devotas do vodum) que, em ambos os casos, se dividia em dois estágios. O primeiro consistia numa iniciação “simples”, na qual a vodúnsi adquiria o grau de vodunsi-he. Porém, era no segundo estágio da iniciação, celebrado só a cada vários anos, que a vodúnsi virava vodúnsi gonjaí (ou vodunsi hunjayi nos Nesuhue), o status mais alto só alcançado pelas devotas de mais experiência e idade. Só as vodúnsi gonjaí podiam receber, além do seu vodum, uma segunda entidade espiritual, a chamada tobosi, uma princesa menina, e só a vodunsi gonjaí podia assumir a função de noché ou chefe da casa.

A última iniciação para “graduar” novas vodunsi gonjaí na Casa das Minas foi celebrada em 1914 com 18 vodúnsis, mas com a morte dessas mulheres e a partir dos anos 1960, as tobosi deixaram de manifestar-se. Essa interrupção crítica da iniciação das gonjaí, atribuída, entre outras razões, à falta de recursos econômicos e a erros rituais, tem comprometido seriamente a continuidade da Casa que, na atualidade, conta com um reduzido número de vodúnsis em idade bastante avançada. Contudo, a Casa das Minas tem exercido uma notável influência nos terreiros de Tambor de Mina e deve ser considerada uma das matrizes dessa instituição religiosa. Por exemplo, as tobosas, moças ou princesas seguem manifestando-se em muitas das casas de fundação mais recente. Como emblema da resistência da cultura negra e em reconhecimento da sua importância histórica e religiosa a Casa das Minas foi tombada pelo IPHAN em 2002.

Já na Bahia, embora os voduns jejes possam encontrar correspondências com os orixás nagôs, eles constituem uma categoria de entidades espirituais diferenciada. No rito jeje-mahi dos terreiros de Salvador e Cachoeira, além de voduns como Aizan (associado aos ancestrais) ou Aziri Tobosi (associada às águas), há três grandes panteões: a família de Kaviono ou Heviosô (associada ao trovão e ao fogo), a família de Azonsu ou Sakpata (associada à terra e a varíola) e a família de Dan (associada à cobra e ao arco-íris). As famílias baianas de Heviosô e de Azonsu correspondem grosso modo às famílias maranhenses de Quevioçô e de Dambirá, respectivamente. Porém, no rito jeje da Bahia destacam os voduns associados às cobras – que são Bessem, Dangbe, e Toquem, apenas conhecidos no Maranhão –, enquanto a Casa das Minas, como vimos, se distingue pela proeminência da família real de Davice, um panteão desconhecido na Bahia.

Uma comparação entre o culto jeje-mahi da Bahia e o mina-jeje do Maranhão revelaria que diferenças nos panteões e outros aspectos litúrgicos derivam não apenas da dinâmica sócio-histórica de cada contexto regional, mas também da especificidade étnica dos especialistas religiosos responsáveis pela transferência atlântica dos cultos. Os jejes provinham de várias províncias ou “terras” e pertenciam a etnias distintas – mahi, savalu, fon, mudibi –, cada uma com devoção por grupos de divindades específicos. Por exemplo, o aristocrático culto aos Nesuhue era exclusivo dos fons, enquanto os cultos a voduns como Hevioso, Sakpata ou Dan eram “públicos” e transétnicos. Esses panteões, que já na África funcionavam como cultos de múltiplas divindades, foram agregados ou justapostos no Brasil em cultos cada vez mais plurais e abrangentes.

Apesar das diferenças regionais, a identidade das divindades enquanto voduns e a língua ritual – inscrita nos cantos, preces, saudações, benções e terminologia religiosa – constituem os principais características da nação ou rito jeje. Outras especificidades aparecem nos ritmos de tambor, nas danças, nos emblemas das divindades, no vestuário, e também nos processos de iniciação. Todavia o fator diferencial jeje aparece nos rituais. A nação jeje-mahi da Bahia, por exemplo, caracteriza-se pela festa do boita – uma das obrigações mais importantes e concorridas do calendário anual, na qual os voduns desfilam em volta dos atinsa ou árvores sagradas –, e pela cerimônia do zandro que consiste na invocação das divindades para anunciar-lhes a celebração das oferendas animais no dia seguinte. O rito jeje-mahi também se caracteriza por compartilhar com os angolas certos rituais iniciáticos que não são praticados no rito nagô-ketu, como o gra - uma prova realizada no mato - ou a quitanda das iaôs - a venda de frutas realizada pelas noviças no fim da sua iniciação.

Podemos concluir, portanto, que particularidades dos cultos aos voduns originários da área gbe determinaram em grande parte a singularidade da nação jeje, mas tal identidade étnico-religiosa também foi resultado de um diálogo com outras tradições afro-brasileiras concorrentes. Nesse sentido, embora silenciada pelos estudos afro-brasileiros, a contribuição dos cultos voduns à formação das religiões afro-brasileiras parece ter sido mais influente do que é normalmente reconhecido.


Luis Nicolau Parés é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autor de A formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia (Unicamp, 2006).

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