14 de dezembro de 2009

Pobre samba meu

Por Felipe Trotta

Durante a primeira metade do século XX, o samba se tornou o principal gênero do mercado de música popular brasileira. Na voz de cantores de grande apelo popular, como, entre outros, Chico Alves, Nelson Gonçalves e Orlando Silva, o “cantor das multidões”, que pelas ondas do rádio alcançavam públicos do Brasil inteiro, pode-se dizer que o gênero se firmou como símbolo da unidade nacional e, gradativamente, ampliou seu prestígio no conjunto da sociedade e se consagrou no mercado. Apesar de eventuais preconceitos das elites intelectualizadas contra esse gênero saído dos morros cariocas, redutos dos pobres e excluídos, o mercado musical sempre conviveu muito bem com o imaginário impresso nas composições, fortemente apoiado em referências simbólicas – “o morro”, o “barracão”, a “favela” – originárias das rodas comunitárias onde eram produzidas. No final da década de 1950, contudo, esse convívio relativamente tranquilo começou a se alterar. Foi quando jovens da classe média, como Carlos Lyra, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, passaram a se reunir em apartamentos da Zona Sul do Rio de Janeiro para trocar ideias e propostas musicais. Não precisavam de muito. Bastavam “um cantinho, um violão”, como na música de Tom Jobim. Dispensavam a voz “impostada” dos grandes intérpretes do período e o aparato cênico que a Rádio Nacional e o cinema montavam para apresentar os novos lançamentos da MPB.

O fato é que o surgimento da bossa nova inaugurou uma nova fase no mercado de música. Para seus teóricos, a bossa nova se caracterizava pela busca de novos elementos musicais capazes de dar ao samba um caráter “moderno”, em sintonia com o desenvolvimentismo do momento político-cultural do governo de Juscelino Kubitschek. O Brasil vivenciava uma atmosfera de otimismo e de crença no futuro, e o novo gênero seria uma expressão legítima de tais sentimentos. Em vez dos antigos temas da música brasileira, falava-se agora do barquinho, do violão, do sol, do sul, do mar e do amor. Mas e o samba? Que lugar estaria reservado a ele nessa nova conjuntura?

“Tradição” e “modernização” são noções que demarcam formas de relação com o tempo. A primeira estabelece uma ligação entre o presente e o passado, valorizando aspectos e fatos em detrimento de outros. Já a ideia de “modernidade” se volta para o presente, renegando o passado a um plano inferior, representado como algo sem importância, que “já passou”. Samba e bossa nova são duas categorias do mercado de música que, como veremos, se identificam respectivamente com as ideias de “tradição” e “modernidade”, e que, a partir delas, construíram formas e estratégias distintas de valorização estética.

Elaborado no seio de um conjunto social formado majoritariamente por ex-escravos e seus descendentes, o samba sempre esteve associado a um ambiente comunitário, ao convívio cotidiano de parentes, amigos e vizinhos, e também à ideia de festa, de sociabilidade e de lazer. Esse ambiente era representado no repertório principalmente através de uma série de símbolos que expressavam laços afetivos, servindo como elo entre as pessoas e promovendo coesão social nessa parcela da população. O “morro”, a “favela”, o “bairro” e a “escola de samba”, entre outros, frequentam espaços de destaque no imaginário do repertório do samba, formando um universo rico de auto-referências musicais e afetivas.

Por outro lado, a identificação com símbolos e práticas culturais desses grupos de baixa renda formados em sua maioria por negros e mulatos produziu, externamente, uma reação preconceituosa contra o gênero, que passou a ser atacado, segundo Adalberto Paranhos, como “coisa de negros e vadios”. Perseguido pela polícia e associado a vários tipos de delinquência no início, o samba aos poucos foi conquistando espaços no disco, no rádio e no mercado de shows.

A modernidade do estilo da bossa nova colaborou para estabelecer uma distinção no consumo musical em sintonia com a situação econômico-social dos diferentes públicos a quem se dirigia: uma música destinada ao consumo das elites intelectualizadas, e a outra, chamada de “tradicional”, que incluía o samba, destinada às “camadas mais baixas”. Musicalmente, os elementos da bossa nova sedimentaram essa distinção, aproximando a prática desse grupo de músicos e artistas dos critérios de valoração da música erudita.

O padrão de qualidade da música ocidental deriva da obra de compositores como Bach, Mozart, Beethoven e contemporâneos, a partir das quais se elaborou uma teoria musical ensinada em conservatórios e escolas de música no mundo todo. Nesse sentido, a bossa nova adquiriu grande prestígio estético, tendo contribuído certamente para isso a participação no movimento de Tom Jobim, músico de formação erudita, e de Vinicius de Moraes, poeta benquisto no meio intelectual que aderira a formas populares de expressão.

A bossa nova utilizou estruturas musicais de maior complexidade e, ao mesmo tempo, eliminou a polirritmia da percussão do samba, proposta sintetizada na batida de violão de João Gilberto, intérprete de Chega de saudade, de Tom e Vinicius, composição de 1956 que é considerada um marco do movimento. Soma-se a isso a interpretação vocal intimista do cantor, que se distanciava do canto popular impostado, amplamente utilizado pelos antigos intérpretes de samba das décadas de 1930-40. A bossa nova representava uma modernidade elegante, que rapidamente foi reconhecida como de alta qualidade.

O samba, por sua vez, estava cada vez mais estreitamente associado com o imaginário das rodas e do “fundo de quintal”. Essa ênfase aparecia na valorização de sua sonoridade característica (cavaquinho, pandeiro, cuíca, surdo e violão) e em referências a um passado glorioso do gênero, às escolas, e a espaços legitimados do seu imaginário, como as “esquinas, os botequins e os terreiros” do samba de Nelson Sargento. O samba iria buscar então um tipo de valoração mercadológica fortemente identificado com a “tradição”. Com isso, passou a ocupar uma zona de menor prestígio estético nesse mercado, sendo caracterizado como uma prática dotada de menor grau de sofisticação, “parada” no passado e por isso menos relevante para a história da música popular brasileira.

A mudança no patamar hierárquico da categoria samba acentuou diversos preconceitos relacionados à origem do gênero, que perpassam sua trajetória até os dias de hoje. Além do preconceito racial e social, o gênero continua sendo visto como uma prática cultural de menor valor artístico e estético, uma vez que seus elementos estruturais não correspondem aos critérios de qualidade cunhados pela bossa nova. A estratégia de legitimação utilizada por sambistas e admiradores do gênero colabora indiretamente para a manutenção dessa posição, ao se basear na valorização do samba a partir de sua vivência comunitária nas rodas, subúrbios e morros, associando-a com recorrência à “tradição”.

Um episódio que ilustra muito bem essa distinção valorativa do samba no mercado e no imaginário brasileiro ocorreu no réveillon de 1996, no Rio de Janeiro, quando seis artistas de prestígio no mercado fizeram um show em homenagem a Tom Jobim, falecido dois anos antes. Por essa apresentação, o sambista Paulinho da Viola recebeu um cachê três vezes menor que o dos demais artistas. Em meio a muitas brigas, acusações e xingamentos, ficou claro o desprestígio de um artista de samba, se comparado a outros identificados com uma categoria de mercado mais conceituada e reconhecida como de alta qualidade. Segundo Eduardo Coutinho, o episódio revelou uma desvalorização da “tradição”, que desde meados do século XX havia se tornado um critério de valoração menos reconhecido do que a “modernidade”.

Como movimento musical, a bossa nova durou pouco tempo. No entanto, a noção de modernidade aliada à qualidade se revelou um critério de valoração perene na música nacional. A cantora Nara Leão, musa do movimento, incorporaria ao seu repertório compositores “do morro”, como Zé Kéti e Nelson Cavaquinho, e do Nordeste, como João do Vale, que reapareciam em público assim numa roupagem mais ao gosto da classe média e finalmente começavam a vender discos. Ao mesmo tempo, o golpe civil-militar de 1964 ensejaria músicas politicamente “engajadas”, como as de Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo, compositores formados no contexto bossa-novista, que também tentam resgatar, a partir de uma perspectiva “moderna”, as tradições populares da música brasileira.

No final da década de 1960, o tropicalismo, movimento fundado, entre outros, pelos baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso, iria acrescentar um novo aspecto à modernidade, incorporando elementos da canção de massa internacional. Para seus protagonistas, a estética musical do Brasil não podia se resumir a uma música “engajada” ou a uma modernidade estética “alienada”, e propunham uma “retomada da linha evolutiva”, que nesse caso, representava a possibilidade de inclusão de elementos estéticos importados de músicas estrangeiras. Nesse sentido, a modernidade se aliou também à mistura, ao mercado e à quantidade.

Entre a quantidade e a qualidade moderna, nasceria uma nova categoria de mercado identificada pela sigla MPB. Nessa estética, samba, baião, rock, frevo e balada são apenas ritmos disponíveis para elaboração da criação individual de um artista muito valorizado esteticamente. No mesmo período, a indústria fonográfica fixou no LP a forma principal de produção de discos, que substituía os antigos compactos. O LP aumentou ainda mais a importância do artista, pois o disco passou a ser representado não mais a partir de cada música isolada, mas pelo conjunto, unido esteticamente em torno da mítica do “artista”. Mais uma vez, o samba, com seu caráter comunitário e coletivo, se via diminuído em face do elevado prestígio individualizado da liberdade estilística dos artistas da MPB. O episódio do réveillon de 1996 é um exemplo contundente desse rebaixamento hierárquico.

Desde a década de 1960, o gênero samba vive disputando mercado com uma ampla gama de músicas “modernas”. Na zona de prestígio, a “modernidade” da bossa nova transborda para diversas estéticas que circulam pela sociedade através da MPB, sempre num patamar hierárquico mais vantajoso que o do samba. Na área comercial, o rock, o pop, o reggae e várias outras estéticas internacionais “modernas” que por aqui aportam encontram no samba uma antítese nacional com a qual disputam território midiático e parte do público. Avesso a essa modernidade (tanto do lado da quantidade quanto no da qualidade), o samba se abraçou à sua “tradição” e andou peitando brigas e mais brigas: contra o rock, contra a MPB, contra o pop e, genericamente, contra o “mercado”. Assim, desenvolveu uma relação conflituosa com as instâncias desse mercado e também com representantes de outras práticas musicais.

Somente no fim da década de 1990 é que, ainda sem avançar muito no patamar hierárquico, o samba foi capaz de equilibrar a disputa com os critérios de modernidade, ocupando esferas significativas do mercado através de uma inédita diversidade estética no interior do próprio gênero. Aí as disputas migraram para dentro dele, numa acirrada discussão sobre os critérios de definição do gênero representada nos rótulos “samba de raiz” e “pagode romântico”. Tais transformações são reveladoras da dinâmica cultural da nossa música e da importância de um gênero que continua a levar alegria a “milhões de corações dos brasileiros”.


Felipe Trotta é mestre em musicologia pela Uni-Rio, doutorando em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor de “Dinheiro e solidão no Pecado Capital de Paulinho da Viola" In: Ao encontro da Palavra Cantada. (7Letras, 2001). É também músico, violonista e arranjador.

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